
Dia desses, nem tão frio, nem tão quente, acordei decidida a escrever um conto. Tomei o meu fumegante café, passei um creme anti-rugas pela cara toda, meu filho — que sempre acorda mais cedo que eu — havia aprontado mais uma de suas encrencas e eu tratei de castigá-lo. O grande castigo moderno. Mandei o menino ficar em seu quarto assistindo TV e nada de se levantar, Seu Mocinho. Ainda decidida a escrever, procurei por meus óculos, pensei em algumas bobagens e mãos à obra. Liguei o computador, Bach preencheu o ambiente — assim como o aroma de lavanda que emanava do piso que a Rô, a simpática e bondosa criatura que toma conta de minha casa, havia deixado pelos cômodos enquanto fazia a sua extraordinária limpeza. Estava tudo em perfeitas condições. Casa limpa, filho de castigo e a Rô limpando cada cantinho da casa, retirando a poeira do tempo. Respirei tranquila e passei a elaborar o conto que já me saltava pela boca.
Começo a digitar e a tela vai se enchendo de palavras. Éramos o computador, eu e as letrinhas. Dia bom, pensei. E quando a Melinda, personagem do conto, dialogava com seus botões, o silêncio que ocupa o mundo após o desligar do motor do carro. Gente gritando na rua, gente insatisfeita, telefone sem fio e mudo, o coitado. Melinda sumiu num piscar de olhos. Logo percebi que não sou independente. Não sou livre. De que me adianta o creme anti-rugas, o filho de castigo, o aroma de lavanda? E Bach me abandonou. A Rô entra apressadamente em meu quarto e anuncia com seu sotaque do interior da Paraíba: "— Faltou luz de novo, Dona Menina. Valha-me Deus!". Eu estava aleijada e sem conto. A Melinda mal havia começado a existir. Tantas palavras perdidas porque esqueci de salvar o arquivo e agora Inês era morta. Aliás, Melinda.
Não fiz alarde. Desisti do conto e me dirigi à sala, vislumbrei a estante e catei um livro de crônicas. Me dei por contente. Me acomodei no sofá e Carlos Drummond de Andrade muito tem a dizer. Leio três crônicas do Drummond, sigo lendo compulsiva, me entrego ao Fernando Sabino e começo a salivar porque carrego em mim esse vício pela linguagem escrita. Aflita, embora aparentando estar calma, peço a Rô que me traga meu caderno que sempre me ajuda nos momentos mais difíceis. Munida de uma caneta esferográfica de cor azul, uma folha em branco pela frente e eu louca para fazer desfilarem as palavras que me habitam. Venci a tecnologia. Sou o homem descobrindo que o atrito gera o fogo. Mesmo que eu não possua uma Remington, me sinto clássica e alfabetizada. Senti o alívio por estar liberta de algo que tanto me causara angústia. Graças ao manuscrito, Melinda voltou do suplício de quem morre engolida por um furacão. Melinda era a criança natimorta. Burlei a eletricidade e escrevi horas a fio. Agora éramos o caderno, a caneta, o aroma de lavanda, meu filho brincando com seus aviões, a Rô cantarolando no quintal e a Melinda tomando minhas palavras cursivas numa folha de papel.
Começo a digitar e a tela vai se enchendo de palavras. Éramos o computador, eu e as letrinhas. Dia bom, pensei. E quando a Melinda, personagem do conto, dialogava com seus botões, o silêncio que ocupa o mundo após o desligar do motor do carro. Gente gritando na rua, gente insatisfeita, telefone sem fio e mudo, o coitado. Melinda sumiu num piscar de olhos. Logo percebi que não sou independente. Não sou livre. De que me adianta o creme anti-rugas, o filho de castigo, o aroma de lavanda? E Bach me abandonou. A Rô entra apressadamente em meu quarto e anuncia com seu sotaque do interior da Paraíba: "— Faltou luz de novo, Dona Menina. Valha-me Deus!". Eu estava aleijada e sem conto. A Melinda mal havia começado a existir. Tantas palavras perdidas porque esqueci de salvar o arquivo e agora Inês era morta. Aliás, Melinda.
Não fiz alarde. Desisti do conto e me dirigi à sala, vislumbrei a estante e catei um livro de crônicas. Me dei por contente. Me acomodei no sofá e Carlos Drummond de Andrade muito tem a dizer. Leio três crônicas do Drummond, sigo lendo compulsiva, me entrego ao Fernando Sabino e começo a salivar porque carrego em mim esse vício pela linguagem escrita. Aflita, embora aparentando estar calma, peço a Rô que me traga meu caderno que sempre me ajuda nos momentos mais difíceis. Munida de uma caneta esferográfica de cor azul, uma folha em branco pela frente e eu louca para fazer desfilarem as palavras que me habitam. Venci a tecnologia. Sou o homem descobrindo que o atrito gera o fogo. Mesmo que eu não possua uma Remington, me sinto clássica e alfabetizada. Senti o alívio por estar liberta de algo que tanto me causara angústia. Graças ao manuscrito, Melinda voltou do suplício de quem morre engolida por um furacão. Melinda era a criança natimorta. Burlei a eletricidade e escrevi horas a fio. Agora éramos o caderno, a caneta, o aroma de lavanda, meu filho brincando com seus aviões, a Rô cantarolando no quintal e a Melinda tomando minhas palavras cursivas numa folha de papel.
Image by zerohdog