atrapalhados







O menino catava os descartáveis no lixo e ouvia, com seu carrinho de puxar tralha, uma música terrível. Ajudei a criança a coletar as garrafas plásticas que eu havia separado e tentei não dar ouvidos ao estrondo e ritmo daquela canção que só gritava sobre bebida, palavrão e pornografia. O menino cantarolava e, vez em quando, batia as garrafas uma na outra na tentativa de reproduzir aquele som. Minha inquietação não me permitiu calar. Chamei o menino e perguntei por que ele tanto gostava daquela música. O menino sequer entendeu minha pergunta. Me olhou como se olha na cara de gente maluca e deixou escapar uma risada. O riso de zombaria me encorajou ao desafio de pedir ao menino para ouvir algumas canções salvas em uma plataforma musical instalada em meu celular. Nem me dei ao medo do menino roubar meu telefone. Eu só queria compartilhar com ele parte do mundo que conheço. A criança aceitou o desafio, mesmo com sua cara de presa que teme predador. Aproximou-se de mim e, então, deixei tocar Erik Satie por quase dez segundos inteiros, até que o menino me interrompeu com interjeições de incompreensão e palavras de zombaria. Nos olhos da criança desmantelada nem brilho fosco surgiu. Talvez estivesse com fome, pensei. Mas não desisti. Insisti para que ele ouvisse outra música. O menino arranjou desculpa dizendo que a mãe o esperava no fim da rua. Mesmo assim, insisti. Só mais uma e deixo você ir, prometi. Dessa vez, procurei somente o instrumental de uma canção dos Beatles. Encontrei Please Please Me. Sem as vozes em língua estrangeira ao menino, o som atraiu sua atenção. Percebi que sua cabeça se movia acompanhando os acordes. Os pés se moviam com timidez, mas se moviam. Finalmente um sinal de que não era de tal forma imensa a distância entre o menino e eu.

— Oxe, Tia! Isso é forró?

Eu sorri ao ouvir do menino sua pergunta e respondi:

— Isso é o que chamam de rock and roll.

O menino encabulado coçou a nuca e deu mais risada. Usou sua linguagem para dizer que havia gostado da música, pegou outras garrafas que estavam separadas em um saco plástico, jogou tudo em seu carrinho e seguiu viagem. Eu fiquei parada na calçada observando o menino se distanciar. Dentro de mim eu sentia algo revelador, pois nunca imaginei ser tão simples dar ao outro o mundo que conheço. Ao meu primeiro movimento para entrar em  casa, ouvi de longe o que seria a música horrível que o menino ouvia em seu carrinho de puxar tralha. Parei, respirei fundo, me dirigi à cozinha e tratei de lavar os pratos.










Comentários

Ediney Santana disse…
" Dentro de mim eu sentia algo revelador, pois nunca imaginei ser tão simples dar ao outro o mundo que conheço. "
Gosto do texto que nunca se sabe se é ficção ou não, na dúvida te coloco em narrativa em todos.
NDORETTO disse…
Lindo !
Ah, escritora !

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