O menino catava os descartáveis no lixo e ouvia, com seu carrinho de puxar tralha, uma música terrível. Ajudei a criança a coletar as garrafas plásticas que eu havia separado e tentei não dar ouvidos ao estrondo e ritmo daquela canção que só gritava sobre bebida, palavrão e pornografia. O menino cantarolava e, vez em quando, batia as garrafas uma na outra na tentativa de reproduzir aquele som. Minha inquietação não me permitiu calar. Chamei o menino e perguntei por que ele tanto gostava daquela música. O menino sequer entendeu minha pergunta. Me olhou como se olha na cara de gente maluca e deixou escapar uma risada. O riso de zombaria me encorajou ao desafio de pedir ao menino para ouvir algumas canções salvas em uma plataforma musical instalada em meu celular. Nem me dei ao medo do menino roubar meu telefone. Eu só queria compartilhar com ele parte do mundo que conheço. A criança aceitou o desafio, mesmo com sua cara de presa que teme predador. Aproximou-se de mim e, então, ...
De volta às palavras, mas ainda sem entender porque fiquei em silêncio literário por tanto tempo. Para quem escrevia compulsivamente, publicando tudo ao mesmo tempo, diria que me tornei quieta e meditativa. A pandemia, agora distante, me obrigou a visitar meus aposentos sombrios. Exagero? Sombrio talvez não seja o termo. adequado. Digo que a solidão da pandemia me revelou que sou o que nunca percebi ao claro dia. Sou introspectiva e um tanto antissocial, mas sempre de forma positiva, se me é possível colocar dessa forma. Sempre que alguém se declara introspectivo ou averso ao abuso da convivência social, levanta-se a suspeita de que exista arrogância contida. Não é arrogante aquele que se cala para ouvir a si mesmo. Pense comigo: como é possível ouvir o que temos a nos dizer se estamos, a todo instante, envoltos na tagarelice do mundo? Não há chance. Para que alguém se ouça, verdadeira e honestamente, se faz necessário um ou dois passos para trás, ouvidos bem abertos e muito cuidado pa...
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