sinfônica adulterada









Letícia Palmeira tem tanta vontade de escrever que chega a ser quase um vício. Mas atenção, leitores desta Sinfônica Adulterada, é preciso que esses dois impulsos não se confundam. Vício é entrega desordenada, vertigem, alucinação. Vontade é algo com o que se pode conviver sem se matar. Este sentir também é muito menos aquilo que se acumula, assim como o faz certa personagem que merece ser largada – depois de devidamente quebrados: pratos e porta-retratos! Por isso a vontade aqui é diversa do vício. Letícia sabe bem orquestrar sua escrita. Isso já ficou claro em seu primeiro livro: Artesã de Ilusórios. E como reza a partitura: “(...)há outros tantos livros e uma nova parte da vida a ser vivida, mas, depois deste segundo,(...)”.

Aliás, só quem viveu a experiência de ter um relógio à prova d´água todo embaçado, a ponto de ter que observar bem de perto para ver as horas por trás do vidro fosco, é que sabe: amor é coisa por demais arriscada. Assim como a escrita. É preciso coragem para correr o risco. “Meu relógio de pulso, que me disseram ser à prova d’água, me parece um aquário. Os ponteiros são peixinhos nadando na correnteza das horas.” As personagens – quase todas – carregam por debaixo das saias e calças, dentro de suas valises, suas bolsas com objetos pessoais, ou mesmo nas farmacinhas de banheiro uma quase grave culpa acumulada. Uma culpa que às vezes pode até contaminar a autora que deixa escapar um pudor entre tantos desaforos; mas é tarde demais: a culpa se quer confessar ao mais íntimo leitor (seu melhor cúmplice). E as personagens despem peça por peça de seus discursos, abrem as bolsas e malas, escancaram suas casas, convidam ao exercício absurdo de mostrarem seus segredos mais bem guardados. O rosto sem maquiagem em pleno dia de ressaca ou o ângulo ruim do amor, quando o amante narcísico importa-se somente com o próprio reflexo deflagrado nos olhos de quem está por baixo.

O livro-confessionário, em sendo um objeto, poderá ser fechado, guardado na estante com sua lombada discretíssima acumulando a poeira dos dias; mas as inquietações hão de atrair uma mão que o alcance e o leve pra o sofá da sala, pra cama, pro banheiro, meio da rua, igreja, consultório ou mesmo pra mesa de algum bar. Esses mesmos lugares por onde perambulam os personagens de Letícia. É que o fato de sermos cúmplices nos compromete, pois os crimes são confessados pelos piores subversivos: aqueles de quem ninguém pode dizer um “A”. O leitor vai ficar pensando como que a autora se atreve a usar todo o dicionário para mexer na vida desses seres de aparência tão normal. O bom do livro é isso. Ninguém é simples. Cada personagem, por mais pacato que seja, guarda seus líricos segredos e suas perversas predileções. Ainda que sejam elas apenas um desejo incontido de ir-se embora; muito embora saciado pelo simples olhar para a estrada: “(...)ao soprar do vento pela brecha da janela, alguém canta amores na estação de rádio e eu me sirvo de olhar a estrada.” Nesse embalar de alma, arrisca-se um palpite. Uma constatação que pode até soar meio Drummond ou Cazuza: “Estou sempre tão agregado a mim”. Também há muitas canções que embalam o livro. Mas que bobagem, as letras não falam...

Interessante é que muitas das personagens desta Sinfonia Adulterada são leitores; se não de si mesmos e da vida que levam – leitores de livros! A ponto de questionar seus autores e confundirem paixão com ficção. Quem sabe não esteja nisso a devolução do gesto narcísico; quando a criatura adula o criador. E se no conto que dá título ao livro está inscrita a advertência: “A vida é um conto desprovido de fim. Fim delimita.”, em Letícia Palmeira o leitor pode sofrer o certo incômodo de não ser adulado; pois nada é o que a princípio parece ser. Que entrem os convidados. A escrita de Letícia Palmeira está plenamente aberta. Aqui tudo é muitíssimo... “Elegante. Feito dois gatos engolindo elefantes.”




Assionara Souza 

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