diário bordô








Sobre dívidas e amores
(Por Eder Asa)





Já me peguei fazendo careta de frente ao espelho, testando beleza,
provando feiura, nua e de ray-ban. Sou o enterro da decência.

(Preta Alva)




Perguntaram-me sobre sonhos e eu falei em ser escritora. EscritorA, com ênfase na sentença feminina. Escritora, a despeito dos meus pelos na cara e do meu sexo pendendo. Eu o reTiro, se for preciso. Condenem-me sexista, me preguem em uma cruz de falos, mas há que se ter útero para escrever, ainda que não se tenha. Útero-coração. Que sente, bate, pare e diga. Letícia Palmeira legitima meu desejo.

Às vezes, em nossas conversas pessoais, chamo Letícia pela alcunha de Mulher, ao que ela responde — homem! — justo eu, moleque, que ainda trago entranhado o cheiro das fraudas e dos estéreis videogames. O fato é que Letícia ressignifica o termo Mulher. Arreganha-se, explicita tão minuciosa o pulso de seu útero-coração que, para mim, ela fica definida assim: mulher.

Letícia fala de um assunto que nos interessa: Letícia Palmeira. Suas minhocas na cabeça fértil, seu salto alto manco e a unha que intercala vermelho-ausência. Letícia nua e só ela já é tema de literatura. A gente a vê e de repente conhece até o pai, o filho — beijo, Pedro! — o lírico santo e amém, se vê sentado em sua sala, de frente com a autora, ora servindo chá, ora deitada no divã. Ela cativa tanto que concluí que ela só pode ser ficção.

Fico pensando na linearidade, no fio da vida (eu que nunca pensei na vida como um fio!). O livro vai e passa pelas datas, pelos meses. Vai cronológico e dá essa web-cara, esse ar de diário moderno, de bordo bordado, transbordando. Bordoando. E é assim que me sinto, bordoado. De olho roxo, lilás de alegria por me reconhecer nela, não me sentir mais só enquanto demasiado humano. Se Álvaro de Campos a tivesse lido, veria que Palmeira também leva porrada e faz questão de expor o hematoma, como quem grita que aqui, aqui há gente.

Advirto — importante! — a Letícia Autobiográfica aqui presente, apesar de apontar seus caprichos, nada tem de revista de banca. Subverte a lírica e vai de encontro a um existencialismo pulsante. Propõe densidade. “Mas veja que bobagem a literatura que não arde”. Arde sem doer, feito amor de Camões. Ardido, Diário de Bordo é um olhar sobre o ofício de escritora, pinceladas sobre o processo criativo desses textos fecundos, como se bebês já discorressem sobre a união de coxas que os conceberam.

Dada altura a Mulher dispara: “Escrever é gozo e também uma longa corda que nos enforca.”. Convido o leitor corajoso, então, a esse orgasmo suicida.







Eder Asa é ator, mora em Minas Gerais e escreve.




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